Dr. Ricardo Lima
Olhar para os sintomas dos filhos como reflexos do que se passa na vida conjugal dos pais é desafiar a visão tradicional da ‘criança problema’, do ‘aluno preguiçoso’ ou mesmo da ‘aborrescência’. A partir das experiências de quase duas décadas no trabalho clínico com queixas referentes aos problemas de aprendizagem, tive a oportunidade de aprender com meus jovens pacientes que, em muitos casos, eles eram portadores de sintomas oriundos das dinâmicas conjugais dos pais. Então, comecei a me interessar e investir esforços com os casais, visando promover um melhor entendimento dos processos que envolvem a vida conjugal e seus reflexos no desenvolvimento dos filhos.
E tenho notado que, muitas vezes, as dificuldades manifestadas pelos filhos funcionam como uma ‘cortina de fumaça’ para os conflitos familiares e conjugais. Isto é, quanto mais o comportamento de um filho se apresenta como ‘problema’, a atenção da família se volta para esse foco, fazendo com que os pais/casais não tenham que olhar para as próprias questões mal resolvidas. É claro que o surgimento de sintomas comportamentais ou educacionais numa criança não se limita a essa causa, mas vejo que esse fato, ainda desconhecido por muitas famílias, atua como força criadora/mantenedora das dificuldades de aprendizagem.
Quando isso é percebido no consultório costumo fazer a seguinte pergunta para os pais: “como está o casamento de vocês?”. Esse é um momento crucial no trabalho clínico, pois não é raro encontrar cônjuges que há tempos estão insatisfeitos em diversos aspectos do casamento; casais que utilizam a comunicação de forma rasa e burocrática, isto é, como ferramenta útil para resolver problemas do dia a dia, mas ineficiente para expor seus sentimentos; parceiros sem intimidade, portanto sem conhecimento mútuo, entre outras questões.
Outro fenômeno que observo é a maior incidência de mulheres que procuram expor estas situações. Dizem, recorrentemente, que se sentem em conflito entre ter uma vida feliz e dar sentido aos seus desejos (já que os filhos estão crescendo) e ainda ter que suportar as tarefas de mãe-esposa-profissional impecável sem a ajuda e a admiração de seus maridos. Quando questionados, muitos maridos relatam não entenderem a insatisfação das mulheres já que elas têm os filhos – segundo eles ‘se elas se realizam como mães, não precisam de mais nada na vida’ – uma casa confortável, um homem trabalhador e provedor, entre outros argumentos. E, nesse impasse, a comunicação do casal fica comprometida pela dificuldade de negociar as diferenças entre o que se espera da relação e o que ela realmente pode proporcionar a cada um dos cônjuges.
Não considerar e se aprofundar nessa questão (é isso mesmo… discutir a relação!) empobrece um aspecto importante no desenvolvimento humano, do casal e da família: o auto-conhecimento. Sem essa consciência surgem dificuldades em assumir, aceitar e lidar com as diferenças, fazendo com que em muitas famílias isso se torne um assunto… digamos… proibido, veladamente censurado. Muitos pais/casais que atendo são inteligentes, bem sucedidos profissionalmente, mas inábeis em lidar com questões emocionais por carecerem de auto-conhecimento. Resultado: o silêncio. Aqui ocorre o que eu chamo de não dito, ou seja, o que existe nos relacionamentos mas fica camuflado, discretamente ignorado. Por exemplo: “sinto que o meu marido não me deseja mais” ou “queria que os meus pais se interessassem mais pelas coisas que eu gosto”.
Ignorar uma questão emocional significa deixá-la operar silenciosa e inconscientemente na própria vida e na família. Seria como cultivar uma mensagem subliminar do tipo: “aprenda, questione e comporte-se apenas dentro daquilo que suportamos, do que damos conta… o que está fora desse alcance, não serve, não pode, deixa pra lá.” Oras, vivemos num mundo de diversidades e a aprendizagem passa justamente pela análise crítica das diferentes formas de pensar, sentir, se comportar… Assim, o processo de aprendizagem fica seriamente comprometido pois reduz o aprender a uma série de memorizações de conteúdos para atingir resultados padronizados e análogos às limitações emocionais da família. Digo questões emocionais pois se referem não somente ao que é avaliado pela educação formal, mas principalmente ao auto-conhecimento.
Nesse contexto, a riqueza interior do ser humano – que tem na diversidade uma de suas melhores qualidades – fica reprimida, censurada, oculta. A auto-estima não se fortalece, pois não há uma construção do amor próprio, mas sim a reprodução do que outro determina ser o amor correto, o afeto permitido. O não dito funciona como ‘peso morto’, ancorando e dificultando o desenvolvimento; a aprendizagem, como fenômeno importante para a constituição de indivíduos (seres únicos, ímpares), não pode ser vivida de forma autônoma e autêntica, explicando as dificuldades de alguns jovens em assimilar, administrar e gerar conhecimentos sozinhos; a criatividade, como manifestação do ‘fazer diferente’, não vale, é censurada… nivelando a vida por baixo… e acaba por emburrecer, desinteressar… entristecer. Para pedir ajuda, alguém na família tem que denunciar que algo está errado. Infelizmente, tenho constatado que isso ainda fica a cargo dos filhos…